Mitocôndria e algumas curiosidades, parte I

Há um bom tempo atrás prometi a um grande amigo que a corrida me trouxe, que eu escreveria um texto sobre mitocôndria, estrutura, função, metabolismo e um “pouquinho” (só assim mesmo, no diminutivo) da sua importância para a corrida de rua. Primeiro tive ideias, depois fiz uma lista dos pontos que precisava abordar, me motivei a escrever, sentei na minha mesa e juro que tentei. Não saí do primeiro parágrafo, porque escrever sobre um tema extremamente complexo, principalmente pensando em pessoas leigas no assunto (isto é, que não são biólogos ou de profissões afins) não é uma tarefa nada fácil. Sim.... escrever já é um desafio, e sobre algo que é uma mistura de informações cada dia mais atualizadas, que correlacionam diferentes áreas do conhecimento em Biologia e abordam um tema essencial para a viabilidade das células eucarióticas que é a transformação de energia; energia é essencial para a manutenção de praticamente todos os processos biológicos que mantém as nossas células vivam. Mas esta semana dois episódios me motivaram a escrever, primeiro porque dei aula para a graduação e vi olhos brilharem com o conhecimento, segundo, um email recebido na segunda-feira.

Vamos começar pelo email enviado pela empresa de suplementos Essential Nutrition. Como prescrito pela nutricionista, uso dois produtos desta empresa. O assunto do email era: “Mitocôndrias regulamentadas pelo relógio biológico”. O equívoco no uso da palavra regulamentada foi o que mais me chamou a atenção; pensei, vamos abrir e brincar de encontrar erros, porque definitivamente eles começaram muito mal. Não é regulamentada, o que eles quiserem dizer é regulada. As duas primeiras frases chamaram muito a atenção, a palavra regulamentada seguiu sendo usada, e a afirmação de que o momento (= hora do dia) de aquisição dos nutrientes talvez possa ser tão importante quanto o que comemos. E então eles reforçam que um estudo sugere que as mitocôndrias são altamente reguladas pelo relógio biológico ou ciclo circadiano. Então, decidi abrir o leia mais. Para minha surpresa o primeiro parágrafo do editorial (escrito em português) cita então um artigo científico publicado numa revista de alto impacto e circulação internacional Proceedings of the National Academy of Science (PNAS) por um grupo de pesquisadores de duas instituições de vanguarda da Ciência mundial, o Weizmann Institute of Science de Israel e o Max Planck Institute of Biochemistry da Alemanha.  Li o editorial até o fim e fui atrás do artigo científico. Enviei o artigo para duas colegas de trabalho, professoras de Biologia Celular e Metabolismo Energético da UFRJ, uma delas inclusive trabalha diretamente com atividade mitocondrial, bem como para minha nutricionista que é PhD em Ciência dos Alimentos pela UFRJ e que se preocupa em se manter sempre atualizada. Tinha certeza absoluta que elas iam curtir a publicação e se interessar pela atualização de conceitos importantes. O título da publicação é “Circadian control of oscillations in mitochondrial rate-limiting enzymes and nutrient utilization by PERIOD proteins” e a referência completa é PNAS, 2016, vol. 113, pp. E1673-82.  
Olhei rapidamente o artigo e percebi que o editorial poderia ter alguns equívocos no conteúdo sobre a pesquisa científica, provavelmente relacionados com a tradução do inglês para o português que parece quase literal, e isso de certa forma o torna bastante confuso e pode levar a interpretações equivocadas. O que me confirma que determinados editoriais deveriam ser escritos não por jornalistas ou mesmo pessoas que não necessariamente conhecem do assunto abordado, mas por especialistas do tema. Sim... Se você se dispõem a escrever um texto com base em conhecimentos obtidos por pesquisadores, precisa saber antes de mais nada interpretar o que você está lendo, para não correr o risco de propagar equívocos. Não é uma tarefa nada fácil. Decidi então que me dedicarei a escrever sobre o tema Mitocôndria visando um público diversificado, tentando levar uma informação correta do que sabemos sobre esta importante e essencial organela das células eucarióticas (isto é, células que apresentam o seu material genético localizado dentro do núcleo, além de apresentar um conjunto de compartimentos que desempenham diferentes funções para manter vivas as células que compõem o nosso organismo). Provavelmente serão dois textos diferentes, no entanto no parágrafo abaixo tentarei fazer um resumo do que de fato elas significam e porque muitos se referem a ela como usina para a produção de energia das células eucarióticas.

Nos dois links abaixo você tem acesso ao editorial publicado pela Essential Nutrition (primeiro) e o resumo/abstract da publicação científica (em inglês):

Editorial Essential Nutrition:

Publicação científica em inglês:


Independente do público alvo, ou mesmo do nível de profundidade do texto, para falar das mitocôndrias e entender sua importância e função, podemos começar dividindo as informações atualmente disponíveis em 4 itens: 1) Como e porque elas surgiram nas células eucarióticas; 2) Histórico da descoberta; 3) Estrutura; 4) Função.

1) Como e porque elas surgiram nas células eucarióticas
As primeiras células eucarióticas que surgiram no Planeta Terra e continham o material genético localizado no interior do núcleo eram anaeróbicas e por isso não eram capazes de metabolizar o oxigênio (O2) produzido pelas algas e bactérias fotossintetizantes. A concentração de O2 atmosférico aumentou significativamente e se difundiu por todo o planeta, resultando numa pressão biológica importante para a evolução celular, uma vez que ele é extremamente tóxico para as células. Foi da necessidade de neutralizar o oxigênio que surgiram as mitocôndrias, a partir da simbiose entre essa célula eucariótica anaeróbica e uma célula capaz de usar o O2 atmosférico; essas células aeróbicas já existiam no planeta, mas eram a minoria. Essa é uma etapa crucial na evolução dos organismos eucariotos, porque deste momento em diante, a concentração de O2 atmosférico foi só aumentando e isso foi muito ruim para as células que não conseguiam usá-lo no seu metabolismo. O termo simbiose significa viver junto sem causar dano; inicialmente foi uma invasão, mas com o tempo o organismo invasor foi sendo incorporado definitivamente pela célula invadida. Algumas características da mitocôndria reforçam a teoria que elas um dia foram uma bactéria, como por exemplo, a presença de genoma próprio com características tipicamente bacterianos.  A partir desta célula eucariótica aeróbica é que surgiram muitas milhares de espécies, incluindo os animais e o homem.

Assista aqui o vídeo no YouTube, Mitocôndria em 3 Atos, parte I


2) Histórico da descoberta
Considero esta parte tão importante quanto todas as outras, porque é mais fácil aprender quando começamos a conhecer como os cientistas chegaram até aquela descoberta. Essa é uma história de sucesso e na minha opinião, fascinante, em todos os sentidos, biológico e científico; por trás dela tem a evolução da célula eucariótica, essencial para a evolução dos organismos multicelulares (formados por várias células). Alguns cientistas ganharam o Prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia por descobertas que envolviam a caracterização bioquímica, fisiológica e estrutural das mitocôndrias.  Entre as décadas de 20 e 50 vários estudos mostraram a estrutura das mitocôndrias por microscopia óptica e eletrônica. Em 1937 e 1948, duas descobertas essenciais resultaram no Prêmio Nobel de Medicina em 1953 para dois pesquisadores, o Hanz Krebs que descobriu o ciclo de Krebs, e o Fritz Lipmann que descobriu a existência da coenzima A. Entre a década de 40 e 50, o desenvolvimento das técnicas de fracionamento celular para separar e estudar as organelas isoladas da célula eucariótica auxiliaram na elucidação da composição química das membranas e compartimentos que compõem a mitocôndria. Neste aspecto destaco alguns nomes, Albert Claude, Ernest Fullam que em 1944 publicaram as primeiras imagens de mitocôndrias isoladas. Entre 1948 e 1951, destacam-se Kennedy, Lenhinger, Schneider, Potter e Hogeboon com a descoberta da oxidação dos ácidos graxos,  de alguns intermediários do ciclo de Krebs e comprovando a composição química complexa das mitocôndrias. Um outro cientista importante foi crucial para esse conjunto de dados Christian de Duve; sua contribuição foi essencial para a padronização e os estudos de fracionamento celular. Outro pesquisador importante foi o George Palade que publicou muitos artigos com a caracterização da estrutura das mitocôndrias. Christian de Duve, George Palade e Albert Claude ganharam o Prêmio Nobel de Medicina em 1974 por suas descobertas sobre a organização estrutural e funcional das células eucarióticas. Por fim, não menos importante foi o microscopista Keith Porter, com importantes contribuições para a elucidação da estrutura celular. No início da década de 50, os pesquisadores conseguiram fazer uma importante correlação funcional, “a oxidação da gorduras também está diretamente relacionado com a transformação de energia (cientificamente mais formal, fosforilação de nucleotídeos adenina, isto é, produção de ATP). E assim, a mitocôndria passa a configurar como organela central no metabolismo energético das células eucarióticas. Importante... essa história tem outros pontos que não mencionei para não alongar demais.
Mais recentemente novas descobertas, principalmente associadas à evolução tecnológica; quero dizer, atualmente contamos com um conjunto de equipamentos analíticos e de alta resolução que nos permitiu ter novos insights sobre a mitocôndria que a trouxe de novo para o foco da ciência mundial. Sim... no início da década de 90, sabíamos muito, acreditava-se que sabia tudo sobre sua estrutura e função, no entanto estávamos equivocados. Ao final da década de 90, no ano de 1999, a Science publicou uma edição especial intitulada, Mitochondria make a comeback. Retornou ao cenário científico porque eles mostraram que ela desempenhava um papel central na regulação do processo de morte celular programada (ou apoptose), um conjunto de reações catalisados por uma cascata de ativação de diversas enzimas que resultam numa forma silenciosa de morte das células eucariótica. Pois é, daí em diante elas passaram a ser correlacionadas não somente como a usina produtora de energia sob a forma de ATP na célula eucariótica, mas também por ser executora (ou protetora) de um programa de morte (ou suicídio, mas regulado). Passou a ser correlacionado com formação de tumores. Eles também mostraram que sua estrutura não era assim como eles tinham mostrado anteriormente, que havia algumas modificações, principalmente relacionadas com o estado metabólico da célula eucariótica, isto é, com o quanto as mitocôndrias respiravam ou mesmo o quanto a própria célula precisava de ATP para suas reações bioquímicas e seu funcionamento. É por isso que chamo de história fascinante!

           Duas imagens, a esquerda fotografia antiga mostrando mitocôndrias e retículo endoplasmático obtida pelo cientista George Palade (vide histórico). A direita capa da edição especial publicada pela Science em 1999. A fotografia destaca uma mitocôndria obtida pelo cientista Keith Porter ao microscópio eletrônico de transmissão próxima a perfis de retículo endoplasmático.

3) Estrutura
Começo minha aula na graduação falando que a mitocôndria é uma organela envolvida por duas membranas, a membrana mitocondrial externa e a membrana mitocondrial interna, que delimitam dois compartimentos, o espaço intermembranar e a matriz mitocondrial. Basicamente é isso, mas hoje podemos dizer ainda que a membrana mitocondrial interna ela pode ser subdividida em dois domínios, resultando no que foi recentemente denominado de membrana cristal. Com isso, apareceu um terceiro subcompartimento, que foi chamado de espaço cristal. Pois é, as organelas que surgiram na célula eucariótica para comportar o ganho de função biológica, essencial para a evolução dos organimos multicelulares, agora se especializam ainda mais. Sim... a estrutura precisa atender totalmente ao conjunto de funções que a organela exerce para a célula eucariótica. É como uma fábrica, em cada membrana, compartimento, subcompartimento, ou domínio ocorrerão um conjunto de reações essenciais para compor a obra completa do metabolismo energético. O que a Biologia Celular faz é exatamente correlacionar estrutura com função e assim buscando entender como o funcionamento das estruturas e organelas contribuem para o equilíbrio metabólico e funcional das células. 

      Imagem de microscopia eletrônica de transmissão de uma mitocôndria (esquerda) mostrando suas membranas e compartimentos. Esquema 3D da organela (direita); não esqueçam que as células e suas organelas são tridimensionais.

   Técnicas avançadas de microscopia eletrônica de transmissão demonstrou que a membrama mitocondrial interna pode ser dividida em subdomínios devido a presença da junção cristal, assim surgiu a membrana cristal e o espaço cristal. Trata-se de uma subcompartimentalização da mitocôndria, que ao final resulta em maior especialização funcional.

4) Função
Não sei o que é mais difícil de falar sobre mitocôndria, apesar de achar que tudo, mas a função, são muitas, estão correlacionadas e são complexas. Tentarei resumir baseado numa das figuras que para mim explica de forma bastante didática o conjunto de reações metabólicas que compõem o processo de transformação da energia. Sim.... Estamos falando de transformação de energia e não produção diretamente. A energia vem de uma única fonte, a luz solar. Ela ativa e participa do processo de fotossíntese nas células vegetais que vai produzir uma molécula de 3 carbonos num ciclo bioquímico essencial para que a vida no Planeta Terra seja possível. É isso mesmo, sem a fotossíntese, nós seres humanos não existiríamos, as mitocôndrias não funcionariam, está tudo interligado. Essa molécula de 3 carbonos é produzida a partir do gás carbônico (CO2) no conjunto completo de reações que compõem a fotossíntese e ela é o substrato para síntese dos carboidratos e lipídeos das células eucarióticas (independente se é vegetal ou animal; sim, nós somos seres heterotróficos, isto é, não somos capazes de sintetizar nossos nutrientes e os vegetais autotróficos, capazes de sintetizar seu próprio nutriente). Mas o que a mitocôndria tem a ver com isso. Através da alimentação, nós suprimos as nossas células com carboidratos e lipídeos. Essas macromoléculas são compostas de ligações carbono-carbono (C-C; mas não esqueça, cada carbono é capaz de fazer 4 ligações químicas); no fundo são nessas ligações que foram armazenadas a energia solar lá no processo de fotossíntese realizado pelas células vegetais. O metabolismo, ou melhor a quebra dessas ligações, é que vai fazer girar o ciclo de reações bioquímicas na mitocôndria que vai produzir uma outra ligação química cheia de energia, que é a produção de ATP. A molécula aqui podemos chamar de piruvato (molécula de 3 carbonos que foi produzida a partir do metabolismo da glicose, um carboidrato) e os lipídeos de ácidos graxos, nada mais, nada menos que gordura. A queima da gordura e do piruvato vai gerar uma molécula de 2 carbonos que está ligada a um cofator enzimático, a coenzima A (CoA); aquela mesmo citada acima e que foi motivo para premiar um pesquisador com o Prêmio Nobel de Medicina. Essa molécula se chama acetil-CoA e ela é o substrato que vai alimentar um conjunto de reações bioquímicas que acontecem na matriz mitocondrial, lembra da estrutura da mitocôndria. É na matriz mitocondrial que acontece o ciclo de Krebs (volta lá em cima). O ciclo de Krebs por sua vez vai produzir moléculas essenciais para um novo conjunto de reações, agora um pouco diferente, podemos dizer assim, onde elétrons vão ser transportados ao longo de complexos de proteínas localizados na membrana mitocondrial interna, que é denominado de cadeia transportadora de elétrons. De forma bastante simplificada, transportar elétrons injeta energia no sistema biológico; essa energia pode ser perdida sob a forma de calor, que é energia que não serve para nada. Mas se tudo estiver funcionando perfeitamente ela é usada para bombear outra molécula carregada, que são os prótons. Esse conjunto de transporte de elétrons e bombeamento de prótons vai fazer funcionar uma enzima presente na membrana mitocondrial interna que se chama ATP sintase. Pois é, sempre ensino aos meus alunos que muitas vezes o significado está em entender o que o nome quer dizer. Então vamos lá, o prefixo ase significa enzima (ou atividade enzimática, que nada mais é do que uma proteína com atividade catalítica); a sufixo sint vem de síntese; ao final temos, enzima capaz de sintetizar ATP. A molécula ATP significa Adenosina Trifosfato (o P é de fosfato em inglês, phosphate). Que quer dizer, molécula com 3 fosfatos. Você sabe o que tem numa molécula assim? Então, é energia sob a forma de ligação química. Pois bem, se quebramos a ligação de um dos fosfatos, liberamos energia para o sistema biológico. Energia essa que é essencial para a vida das células eucarióticas (mas também para as bactérias, é claro). Sem essa energia, mais da metade das reações das células não ocorrerão. Mas preciso lembrar que na célula eucariótica ainda existem outras moléculas que carregam energia, só não vou comentar aqui para não complicar. Além da produção de ATP, prótons e elétrons também são essenciais para neutralizar o O2 que entra na mitocôndria sem nenhuma dificuldade e assim as nossas mitocôndrias também produzem H20. Esse conjunto gigante de reações se chama fosforilação oxidativa. Isto é, através da oxidação de açúcares e gorduras (que vem dos alimentos) produzimos uma molécula com três fosfatos (isso significa ligar um fosfato a uma molécula biológica, no caso aqui o ADP, que é uma molécula com 2 fosfatos). Ao final, as moléculas de ATP saem da mitocôndria e fazem funcionar as células que compõem o nosso organismo. 

                                                    Resumo do metabolismo da mitocôndria.

Se quiser ver tudo funcionando e de forma bastante dinâmica, não perca no YouTube o vídeo Mitocôndria em 3 Atos (Ato 2 e Ato 3) produzido no Instituto de Bioquímica Médica da UFRJ liderado pelo Prof. Dr. Leopoldo de Meis, professor recentemente falecido e especialista em metabolismo mitocondrial.


Eu tentei resumir, mas ainda assim, é complexo, difícil e acabou ficando grande. Espero que não esteja chato, mas que principalmente seja acessível.

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